Lá estava eu de novo, no meio da platéia, prestes a assistir meu filme. Anunciaram no microfone, algumas pessoas se ajeitaram para ver melhor, a luz foi apagada e o documentário começou a passar...
Nessa hora, geralmente, tenho vontade de desaparecer na escuridão. Meu coração palpita de um jeito que eu tenho certeza de que as pessoas em volta podem ouvi-lo! Eu sinto como se, ao verem meu filme, todos estivessem olhando pra mim.
Todo esse drama porque, trabalhos como esse me consomem muito, tomam todo o meu tempo e levam consigo meus pensamentos, minhas paixões e as coisas que mais tenho vontade de comunicar. Fora isso, fico pensando que eles acabam servindo para revelar se eu tenho ou não talento para a profissão que escolhi. Tudo isso lá, exposto, para o julgamento e apreciação do público. Não é fácil... E se ninguém entender? E se dormirem no meio? E se acharem super chato? E se acharem muito mal feito????
Mas dessa vez, eu não estava tão nervosa, nem tão concentrada na reação do público.
Enquanto o documentário passava, minha cabeça viajava, sobrevoando lembranças, tentando entender como é que eu tinha conseguido terminar aquele filme, depois de tanta confusão. Eu só tinha um pensamento naquele momento: "como é que eu vim parar aqui, na frente de tanta gente?"
Antes mesmo da minha chegada de volta ao Rio, me foi pedido para fazer um documentário sobre os 25 anos de uma comunidade religiosa aqui do Recreio. Desde o início eu me empolguei muito com a idéia mas, imersa nas minhas preocupações em arranjar logo um estágio e passando por crises existenciais diversas (rs), enrolei demais para começar a pensar sobre o trabalho.
Minha vida tinha mudado muito, aqui no Brasil. Eu via meus amigos trabalhando, se formando e eu, apesar do bom currículo, sem conseguir o estágio dos sonhos e sem fazer nada de muito produtivo. Isso me frustrava pro-fun-da-men-te. Como assim não tinha uma SUPER oportunidade, só me esperando chegar dos EUA? Em Hollywood estava indo tudo muito bem: fazendo filmes, escrevendo, dirigindo, indo a festivais, estagiando nas empresas mais sinistras da área, trabalhando muito...eu me sentindo em ascensão. Voltei pra cá cheia de expectativas, convencida de que estava no caminho certo e de que, fatalmente, seria bem sucedida aqui também.(hehehe) Essa volta ao Brasil e a falta de perspectiva, me deixou totalmente perdida e insegura em relação à minha escolha profissional.
Então, preocupada com a falta de oportunidade e com o futuro da minha carreira, ao invés de começar a planejar o documentário eu só conseguia pensar:
AONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA QUANDO DECIDI FAZER CINEMA???
Pooooor queeee eu não fiz medicina, engenharia, economia???
Que idéia é essa de querer fazer aaaarteeee?
Que angústia!
Bom, voltando ao filme...
Eu sempre quis fazer um documentário com personagens humildes que, na simplicidade de suas palavras, ensinam tantas coisas. E sempre quis também, fazer um documentário sobre a fé das pessoas - porque é uma coisa que me fascina muito. Ou seja, a idéia de fazer esse filme contando a história dos 25 anos da Igreja do meu bairro, me deixou com a faca e o queijo na mão, mas ao invés de trabalhar, eu gastava meu tempo "cortando os pulsos".
Com algum tempo já perdido, resolvi começar a filmar sem planejamento mesmo. Eu não tinha a me-nor idéia de como faria aquele documentário, não tinha no----ção de como contaria aquela história ...mas, comecei.
Totalmente perdida, sem saber o que estava fazendo e porque fazia, fui filmando sem conseguir imaginar onde ia chegar com tudo aquilo. Mas aos poucos foram surgindo no caminho uns sinais a indicar que eu podia continuar em frente. Comecei a perceber a força e o apoio que as pessoas me davam, e isso foi essencial para que eu não desanimasse!
Nesse trabalho, eu era produtora, diretora, câmera, entrevistadora e todo o resto da minha equipe. Mas ao meu lado, em praticamente todas as gravações estava a minha mãe. Quando eu precisava rapidamente trocar de fita, quando eu precisava me hidratar depois de horas em pé andando pra lá e pra cá no maior calor, ou quando eu, simplesmente, precisava de uma companhia para me deixar com menos vergonha - porque documentário é sempre um pouco invasivo. Eu tinha que filmar o trabalho das pessoas ou seus momentos de intimidade com Deus, isso, no início, me deixava meio constrangida. Mas o mais importante é que a simples presença da minha mãe, não permitia que eu me sentisse só. Eu estava perdidíssima, tanto no trabalho que fazia, quanto, como já contei, no rumo profissional que tomaria, por isso, nada como alguém para caminhar com a gente mesmo quando não sabemos pra onde ir...
Na maioria das filmagens eu me tocava das coisas que precisava, em cima da hora, sem me dar tempo de preparação para conseguí-las. Como se tratava de uma comunidade católica, filmei algumas procissões da Semana Santa. Na primeira delas, estava lá, pronta para começar a caminhar "com o povo", quando percebi que precisaria de uma imagem do alto, mostrando o grupo todo unido. Passei o problema para um amigo querido, que também me ajudou em muitos momentos, mas àquela altura do campeonato era impossível conseguir um prédio, que pudesse subir para filmar. E a procissão começou a andar.... ai meu Deus!!! Fui atrás dela fazendo outro tipo de imagem, correndo de uma lado pro outro para pegar todos os ângulos, quando minha mãe aparece para me salvar: "sobe no nosso carro!" Que maluquete! Eu até tinha pensado nisso antes, tinha achado nosso carro alto o suficiente para o momento, mas achei que a minha mãe nunca permitiria uma coisa dessas...hehehe Ela deixou, eu subi e consegui as imagens que queria.
Passado o erro, na outra procissão lá estávamos nós na cobertura de um prédio.
Aliás, aprender com os erros, foi a lição mais difícil que esse trabalho me ensinou.
Eu tenho dificuldade de aceitar meus erros em qualquer coisa. Tendo, então, escolhido uma profissão um pouco menos valorizada no Brasil e um pouco mais difícil de se conseguir espaço, não me permito errar de jeito nenhum...No meio da crise em que me encontrava, qualquer errinho reforçava o meu desespero e vontade de desistir.
Continuando as filmagens, comecei a ter um desenho na minha cabeça do que seria o filme. Um dia, fiz duas entrevistas muuuuito boas, cheias de emoção, uma seguida da outra. Foram tão boas que me fizeram lembrar da paixão que tinha me colocado alí, a paixão de estar com a câmera na mão, querendo criar alguma coisa. Voltei a fita várias vezes e fiquei revendo essas entrevistas na maior empolgação.
Mais tarde, naquele mesmo dia, fui gravar outras coisas, quando, pela primeira vez, uma das pessoas pediu pra se ver na câmera. Eu rebubinei a fita, passei do ponto, e lá estava a triste constatação: PUUUUTZ! EU TINHA ESQUECIDO DE DEIXAR A FITA NO PONTO, tinha gravado por cima. Aquelas imagens eram as minhas pérolas, as minhas super entrevistas; pessoas emocionadas, vozes tremidas, momentos que não se repetem. Minhas preciosidades tinham se perdido. Só me restou o começo de uma e o final da outra.
Eu não conseguia entender como eu podia ter dado aquele mole. Me dei taaanta bronca. Não havia o que me convencesse de que erros acontecem e de que o meu filme não estaria arruinado por causa daquilo. Só conseguia pensar "Eu não nasci pra isso, eu não sou boa nisso".
Mas...no meio do trabalho, eu não podia desistir. Era um compromisso...então, continuei em frente. As filmagens me alegravam muito, quanto mais eu filmava mais eu via o filme na minha cabeça e mais eu me apaixonava por ele. Logo eu estava totalmente entregue ao trabalho. Dia e noite, a qualquer hora eu estava gravando e descobrindo aquela comunidade maravilhosa - da qual faço parte há 10 anos. Sem tempo pra mais nada, cheguei a ficar agradecida por não ter um estágio naquele momento; dessa forma, podia me dedicar totalmente àquilo que foi me fascinando cada vez mais.
O bom de se tratar de um trabalho sobre a Igreja, é que, em todas as gravações, tinha alguém pra dizer: "Vou rezar por você. Vou rezar por esse filme e pra que você seja uma cineasta maravilhosa". Aiii que bom! Deus os ouça! :)
Além da família, alguns amigos também me ajudaram muito, nas horas em que eu realmente não podia me dividir em várias. Chegavam pra mim dizendo "Déia me fala, como eu posso te ajudar?". Se colocavam à disposição e atendiam aos meus pedidos mais malucos. Alguns deles, passaram quase um dia inteiro num estúdio gravando as músicas que eu precisava pra por no filme. Cantaram como eu pedi, sem questionar, mesmo quando o pedido foi "canta essa música só murmurando." hehehe. Acho que eles realmente confiavam em mim.
Enquanto as pessoas me davam força e acreditavam no meu trabalho, eu ainda tinha minhas dúvidas. hehehe Comecei a capturar as primeiras imagens e entrei em pânico novamente! Eu nunca tinha trabalhado muito como câmera antes. Então.. algumas imagens estavam tremidas, algumas eu não me fixei na cena o tempo necessário e algumas eram simplesmente feias - mal enquadradas. Outra vez: "Eu não nasci pra isso, eu não sou boa nisso".
Mas, tudo bem... eu continuava, continuava, continuava. Vendo os erros eu fui melhorando o enquadramento, as tremidas e o tempo de cada cena. As novas imagens eram lindas e eu cheguei a me arrepiar várias vezes. Ahhh, fazer filme é bom demais!
Faltava um mês para a apresentação quando eu decidi capturar as primeiras fitas. Aí, o novo problema: eu tinha gravado 10 horas. DEZ HORAS para um filme que deveria ter no máximo 20 minutos. Que loucura!
De novo, eu me sentia incapaz..."Devia ter me planejado! Quem faz um negócio desse, filmar isso tudo pra um tempo tão pequeno de video. Como que eu vou fazer isso?"
A edição foi muito difícil. Eu não sabia por onde começar...juntava uma coisa com a outra e não gostava. Começava, apagava, recomeçava...umas duzentas vezes. Me sentia sem inspiração... Eu sei, vocês devem estar me achando maluca: "ué você não disse várias vezes que já tinha a idéia na cabeça?" Siiiim, mas esse é justamente o problema maior de se fazer filme, realizar o que você vê na sua cabeça, quadro por quadro. Fora que, não bastava eu seguir meus planos se eles na realidade não me agradassem e não me emocionassem quando eu assistia. Eu estava longe de chegar aonde eu queria com o filme. Tentava me manter calma...nesse ponto eu já acreditava que em algum momento eu conseguiria, eu conseguiria. Com certeza.
Meu pai... nem sei direito como contar a participação dele nessa história toda. Se eu fosse ele acho que já teria dito pra mim: "minha filha, que idéia é essa de querer fazer cinema? Isso ai não vai dar certo não. Faz outra faculdade pelo amor de Deus" Meu pai é engenheiro, fez concurso e trabalha no mesmo lugar desde que se formou. Tem segurança, estabilidade e responsabilidades seríssimas em seu trabalho. Mas ele da tanto valor à minha escolha como à tudo o que eu faço. Foi ele que comprou a câmera que eu segurava e as caixas e caixas de fita que eu fui usando sem experiência. Ele é realmente meu herói e me salva das minhas enrascadas, sem eu nem precisar pedir. "Filha, não é melhor comprar mais fitas logo? Filha, trouxe outro cabo pra você ver se funciona melhor." Ele é demais!
Enquanto eu editava, ele ficava ansioso, esperando qualquer pedacinho de filme pronto para poder ver. Toda hora ele passava: "Já tem alguma coisa pra eu ver?". Quando eu conseguia fazer alguma coisa, eu mostrava para ele e minha mãe opinarem... Mas não sei se dava muito certo, porque eles sempre amavam. Eu refazia por minha conta e risco.
Quando eu consegui fechar o clipe inicial do filme, fiquei quase bem satisfeita...hehehe :) Mas, depois disso, fiquei um tempão bloqueada, sem conseguir avançar. Eu ficava um tempão em frente ao computador e mesmo quando saía me angustiava querendo voltar pra trabalhar no documentário mas não adiantava, não conseguia evoluir na edição.
Faltando duas semanas eu continuava só com o começo e uma partezinha do meio...Meu pai, que percebeu que estava demorando demais pra eu ter uma parte nova para mostrar, resolveu tentar me ajudar. Tadinho. Ele devia estar angustiado,por tabela com a minha dificuldade. Pegou toda a sua engenharia, uma folha de papel e uma caneta e falou: "filha vem aqui. Deixa eu te explicar uma coisa. Quando a gente tem um projeto, a gente tem que pensar no tempo que temos para realizá-lo." E ai começou a me explicar toda a sua metodologia de trabalho, me mostrando que eu tinha que me programar para ter 30% do trabalho pronto em tal dia, outros tantos por cento no outro dia e assim gradualmente até chegar à conclusão.
Foi uma explicação e, realmente, um ensinamento que eu guardei, mas o problema é que eu não tinha como programar as porcentagens se o meu processo criativo não acontecia. E eu entendo que para ele isso era difícil de compreender.
Não era simplesmente juntar uma cena com a outra, nem simplesmente contar uma história...eu precisava fazer as pessoas sentirem como foram os momentos de dificuldade, os momentos de vitória. Eu precisava transmitir o significado de tudo o que as pessoas estavam contando. Fora isso, tem sempre a preocupação de entreter, prender a atenção, emocionar...tocar as pessoas. E eu realmente acredito que essa equação resulte em arte. Eu realmente acredito que o cinema, feito assim, com paixão e inspiração seja arte.
Resumo da história, eu editei a maior parte do filme nos últimos quatro dias. Sem comer direito, sem dormir, sem levantar da cadeira para absolutamente nada. Passei os dias de camisola. Perdi aula, perdi prova...só importava mesmo o documentário ficar legal. Os 4 dias de maior produção contam com o dia da apresentação do filme. Eu fui para o evento levando o meu computador para poder gravar o DVD!!!!! (louuucuraaaa!!!!! eu sei. hehehehe)
Mas no final, tudo se encaixou. Inclusive os pedaços restantes das minhas super entrevistas (aquelas que acabei gravando coisas por cima). O trabalho que era pra ser de 20 minutos, acabou ficando em 30 minutos.
Foi justamente quando eu estava desanimada quase parando que eu consegui me superar! Fiz o meu filme mais longo, de maior conteúdo, com o maior número de entrevistados e o mais comentado até aqui. Sem dúvida, o maior dos meus desafios e o que mais me fez aprender.
Depois de pensar nisso tudo, ouvi os aplausos de todos, as luzes se acenderem e logo algumas pessoas virem me cumprimentar. Os rostos vermelhos e os olhos ainda molhados eram a resposta que eu mais precisava.
Valeu a pena!! Valeu a pena todo o esforço, toda a dedicação, as 10 horas gravadas, todas as crises e principalmente todas as dificuldades!
Os elogios feitos por amigos e pela família são ótimos, mas - eles que me desculpem-, nada como o reconhecimento dos desconhecidos. Chegou a mim, finalmente, a resposta que eu tanto busquei no período de produção, "Olha menina, você nasceu para isso, vai viver disso e vai viver bem." Incrível!
O filme continua a ser exbido na Igreja, algumas pessoas gostaram tanto, que quiseram comprar o documentário. Por isso ele agora será vendido na Paróquia. O que me deixa extremamente feliz. Até porque...se nada der certo, pelo menos em algumas casas, eu sempre serei uma cineasta! :)
"I am still far from being what I want to be, but with God's help I shall succeed"
Van Gogh